Henrique Lessa - Caminhoneiro

 

Dizem os poetas que os anos 50 foram os anos dourados. Pode ser. Mas tudo era muito difícil, principalmente nas estradas.

Não era raro você chegar num posto de gasolina (ainda sem o boom do diesel) para abastecer e ter que ajudar o bombeiro a tocar a manivela na bomba por falta de energia elétrica. Telefonar para casa era um teste de paciência e sorte. Não havia telefones a não ser no Posto Telefônico, aonde evidentemente toda a cidade ia lá telefonar. Quem precisasse fazer uma ligação interurbana para casa ficava o dia todo sentado no posto telefônico escutando o disse-me-disse sobre esse ou aquele morador enquanto a telefonista fazia tricô atrás de um balcão. E ai daquele que desistisse pensando em mandar um telegrama, pois não era difícil ele mesmo recebê-lo em casa na volta da viagem.

E se o pobre do motorista quebrasse na estrada? A maioria das peças só eram encontradas em São Paulo que, dependendo do lugar onde o carro havia quebrado, levava uma eternidade para chegar.

Durante algum tempo andei levando querosene e gasolina em tambores para a "distante" cidade de Campos, Cachoeiro, Vitória e Nanuque, dividindo com tropeiros e mascates estradinhas que pareciam ter sido cavadas a enxada e picareta.

Fui vendo nas minhas viagens as pequenas vilas se transformando. Ao lado de um posto de gasolina florescia uma pequena cidade, com uma venda, farmácia, pensão, escola e logo, logo, luz elétrica na rua que "alumiava" a nossa passagem rumo ao lugar mais distante, levando todo tipo de carga para abastecer um comercio cada vez mais florescente.

Fui longe com o meu caminhão desbravando mundo grande, descobrindo novos lugares que começavam a surgir. Andei pela estrada vendo as maquinas gigantes que perfuravam o chão do Recôncavo em busca do petróleo. Vi Paulo Afonso como um parto gigantesco parindo luz para milhares e milhares de casas.

Muitas vezes, depois de mais de um dia na fila passei com o meu caminhão numa barcaça por sobre as águas majestosas do São Francisco (que anos depois atravessei em poucos minutos pela ponte) e me aventurei pela estradinha sinuosa no sertão vendo os açudes secando por falta de chuva, as casas de pau-a-pique, o chão torrado do sol brabo, os jegues e os bodes no caminho de Fortaleza onde entregaria a minha carga na empresa e contaria a novidades do Rio de Janeiro, fumando com os ajudantes um cigarrinho de marca nova que só era vendido na Cidade Maravilhosa.

Mais tarde voltava com retirantes na carroçaria do caminhão, que o povo chamava de pau-de-arara. Com 60 pessoas ou mais, demorávamos até 15 dias pra chegar em São Paulo, o Eldorado daquela gente "sofredeira" que deixava tudo pra trás em busca de um emprego, de uma vida melhor e principalmente de um lugar que eles tivessem água sem que ela precisasse cair do céu.

Um dia, achei que já tinha visto de tudo por aí afora. Estava sentado no encerado enquanto os ajudantes carregavam o meu caminhão, quando escutei o gerente da empresa dizer para um funcionário: "O Presidente Juscelino Kubitschek começou a construção de Brasília".

Quase sete anos depois da minha primeira viagem, e de ter viajado quase o país todo, em fevereiro de 1957 o presidente iniciou a construção da nova capital e abriu um imenso campo de trabalho. Quando cheguei em casa e disse que ia carregar para Brasília, ninguém acreditou. Dois dias depois, saia do Rio com uma carga de vergalhões rumo ao desconhecido. Em pouco tempo Brasília ficou sendo o Eldorado para os caminhoneiros. Carga pra lá não faltava. O que não tinha mesmo era estrada. Quando chovia em Goiás, e como chovia, dava vontade de sentar na lama e chorar. Pior ainda era de Anápolis pra frente passando por Corumbá de Goiás. Dali pra Brasília a coisa ficava preta, passando por dentro de fazendas, em cima dos famosos mata-burros, abrindo e fechando porteiras enquanto a vida continuava e o país vibrava com a seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo na Suécia.

Naqueles dias da Copa a gente na estrada não sabia de nada, pois era muito difícil um caminhoneiro ter rádio na boléia. Até Anápolis, quando o Brasil jogava dava pra saber como ia o jogo através dos automóveis que passavam em sentido contrário e mostravam os dedos, conforme a contagem. Pelo sorriso adivinhava que era a favor do Brasil. Mas, de Anápolis em diante perdíamos contato com o mundo exterior e justamente naquele domingo em que o Brasil jogava a final com a Suécia, cheguei em Corumbá de Goiás...

... E lá fui eu subindo a perigosa estrada.

À frente, Brasília, longe, sem rumo certo, do outro lado da serra, sem viva alma pelo caminho e eu querendo saber do resultado do jogo. Depois de muito andar avistei uma venda na beira da estradinha. Já era tarde, quase noite, parei e saí correndo venda adentro e lá estava um pacato cidadão, a luz de um lampião, sentado na cadeira de balanço fumando o seu cigarrinho de palha. O homem não se assustou e perguntou: "Que quê você tá querendo?" Aflito, perguntei se ele tinha escutado o jogo no rádio e quem tinha vencido: "Escutar onde? Aqui ninguém tem rádio. Que jogo é esse?"

Fui embora na maior fossa e só soube que o Brasil foi campeão do mundo em Brasília, na madrugada de segunda-feira quando parei junto as casas de madeira da Cidade Livre onde os 'candangos' ainda festejavam a primeira Copa . Alguns anos depois, chegando pela estrada asfaltada que vinha de Belo Horizonte, gostava de parar no alto e ver Brasília lá embaixo com os prédios enfileirados, suas avenidas retas e sua gente que ajudou a construir aquele mundão.

Eu, velho caminhoneiro, dou Graças ao Meu Deus por ter tido a dádiva de ver e participar do desenvolvimento deste país. Vi nascer Itaipu, as grandes estradas, a televisão que me proporcionou ver um jogo da Copa do Mundo, outro Espírito Santo, na Bahia, outro mais em Pernambuco e pouco depois, no Rio, assistir em casa ao vivo e a cores, o Brasil ser Campeão do Mundo, no México.

De qualquer cidade deste país, falava para a minha casa e podia escutar a voz das pessoas queridas. O rádio na boléia me ligava ao mundo. Os modernos caminhões a diesel engoliam as distâncias passando pela Ponte Rio-Niterói e ônibus luxuosos levam e trazem os nordestinos em sua busca de viver no sul. A peça procurada era encontrada em qualquer cidade por mais longínqua que fosse. A antena parabólica no modesto quintal na beira da estrada captava a imagem dos acontecimentos no mundo e o remédio que salvava vidas era encontrado em qualquer farmácia na pequena vila, fosse na Belém-Brasília, Cuiabá-Porto Velho ou Rio-São Paulo.

Hoje, 52 anos depois da minha primeira viagem de caminhão, estou na frente do meu computador contando a história do Brasil de ontem e de hoje. Agora eu sei que o progresso viajou na boléia do meu caminhão e tenho muito orgulho de ter colaborado para o desenvolvimento deste fantástico país.



Outras:
. Raí - Diretor da Fundação Gol de Letra.
. NILDEMAR SECCHES - Ex-Diretor do BNDES
. Isac Zagury - Diretor do BNDES.
. FERNANDO PERRONE, ex-Diretor do BNDES e Sérgio Besserman, presidente do IBGE.
. EDUARDO MODIANO, ex-Presidente do BNDES
. Oscar José Gonçalves - Produtor cultural e Diretor de Artes Cênicas e Música da FUNARJ
. Sérgio Soares de Almeida - Entregador de Pizza na Rocinha (RJ)
. Ricardo Pinto Nogueira - Superintendente Bovespa
. Oldemar Alonso Cordeiro - Ferroviário Aposentado
. Marilda Martins Monteiro - Funcionária Pública aposentada
. Maria Pedroso Marcommim - Agricultora Paranaense
. José Benedeti Marcommim - Agricultor em Santa Terezinha de Itaipu (PR)
. João Bosco - Fotógrafo
. Gezo Rodrigues de Almeida - Produtor rural em Goiás
. Francisco Plácido Henriques - Gráfico paraibano
. Dora Isabel do Araújo Andrade - Fundadora da ONG Edisca
. Ademir Sebastião Longatti - Pároco em Tiradentes (MG)
. Henrique Morelenbaum - Maestro e professor
. Mauro Thibau, Ministro de Minas e Energia no período de 1964 a 1967
. Márcio Fortes - Ex-presidente do BNDES
. Lula Vieira, Publicitário, um dos diretores da V&S Comunicações
. Depoimentos sobre a desestatização
. Eleazar de Carvalho Filho - Presidente do BNDES
. Henrique Lessa - Caminhoneiro
. Rachel de Queiroz - Escritora
. Depoimentos Diversos
Projeto Memória / 1982